Mês: <span>Outubro 2018</span>

Uma dor com nome

Há temas que nos são particularmente difíceis de falar, pelo teor sensível do assunto e porque têm uma carga emocional carregada de memórias e histórias que nos fazem entristecer. Há uma parte do sofrimento que é sempre muito associada ao facto de nos sentirmos sozinhos na nossa dor, por muito que estejamos rodeados de amigos ou pessoas com quem falar há sempre uma parcela do que vivemos que não conseguimos expressar nem partilhar, é uma espécie de solidão acompanhada.

Tenho uma grande amiga, daquelas a quem já chamo família, que perdeu os pais no espaço de um ano, numa altura da vida em que tudo estava a começar. Era, eramos, muito jovens, com os sonhos todos pela frente. A Maria (nome fictício) ainda não tinha 30 anos quando soube que a mãe estava doente com um cancro, daqueles que aparecem sem aviso.

Um dia destes resolvemos falar sobre isto de forma mais séria, no sentido de darmos a conhecer o que a Maria sentiu e como tem vivido com estas perdas. Era uma conversa adiada, para as duas, porque nunca sabemos se é a altura certa para falar destes assuntos, acho que o que a Maria quis, foi dizer aos outros que nunca se esquece nem se deixa a dor no passado mas que é possível ir elaborando o que se sente e tornar esta perda em memórias e lembranças boas. O tempo não repara nem devolve a pessoa amada, mas transforma o insuportável em tolerável.

– Queres-me falar um pouco de como é que as coisas aconteceram?

A morte dos meus pais deixa-me, até hoje, passados cerca de 16 anos, marcas e saudades. Eu acho que a dor se mantém, não passou, como todos julgam e querem fazer-me crer. A minha mãe foi operada em 2000, correu bem, mas em 2002 o cancro apareceu novamente. Eu e as minhas irmãs não queríamos acreditar quando nos disseram “não é operável, preparem-se para o pior” mas, não aceitámos. Foi um choque, sabíamos que a vida dela estava a prazo, mas, pelo menos para mim, tudo aquilo não estava a acontecer.

– Houve alguma forma de se prepararem para o que ia acontecer?

Não, não nos conseguimos preparar, acho que isso não existe, ou pelo menos não existiu para mim. Primeiro ficas em choque, pensas que não há cura, não há tratamento, mas que tem de haver qualquer coisa. Depois, começas a pensar quando é que vai ser. Todos os dias deitava-me e acordava a pensar nela e no que estava a acontecer, todas as noites são um ponto de interrogação acerca do amanhã e sentes medo, muito medo.

– Consegues descrever como te sentias?

Nem sei bem, era um vazio, parece que caiu tudo. Só na reta final é que me apercebi mesmo de que ela ia partir. Hoje percebo que estive num longo período de negação. Fiz sempre o que vocês psicólogos chamam de “fuga para a frente”. Sempre fui muito positiva, achava sempre que ela ia melhorar, mas isso não aconteceu. Parecia um pesadelo o que estava a acontecer. Era muito ligada à minha mãe, eramos muito próximas, talvez por ser a mais nova das três irmãs.

– E à tua volta, como era?

O meu pai apoiou-nos muito e tínhamos uma pessoa a ajudar em casa a tratar da minha mãe, mas foi quando a vi tão frágil e dependente que caí em mim. Nestas doenças longas, todos os dias perdes a pessoa, estava sempre a sentir que ia perdendo a minha mãe aos bocadinhos.

– Achas que era diferente, se fosse de repente, sem aviso?

Não sei, mas o sofrimento é prolongado até ao dia em que a pessoa parte, estás todos os dias em ansiedade, estás sempre a pensar quando é que será, não desligas um segundo. São momentos de sofrimento insuportáveis.

– Falaste com ela sobre o que estava a acontecer?

Não, não conseguimos falar. Mas eu acho que sabia o que ela sentia.

– A que é que te agarraste para sobreviver a esse momento?

Tinha acabado de ser mãe, agarrei-me à minha filha, foquei as minhas energias nela. Mas por outro lado, isso também era ambíguo, porque revoltava-me saber que ela não ia conhecer a avó, por ex. Vivi todo o tipo de sentimentos, em simultâneo. Ainda hoje, há coisas que faço com a minha filha que a minha mãe fazia comigo e lembro-me sempre dela.

– Como é que foi depois da tua mãe morrer?

Entrei em modo automático, as datas especiais deixaram de ter o mesmo sabor, fingi que nada tinha acontecido. Às vezes ia ao cemitério, era um momento que representava paz, não ia para chorar, só para recordar e sentir a presença dela (…), também me custou voltar a casa dos meus pais, foi muito difícil mesmo. O meu pai era doente cardíaco, desde os 40 anos e com a morte da minha mãe a saúde dele agravou-se. Esteve internado 2 meses nos cuidados intensivos e acabou por morrer, acho que ele não aguentou ficar sozinho, sem a minha mãe…

– Alguma vez pediste ajuda profissional?

Sim, a seguir à morte do meu pai sentia-me muito cansada, triste e fui ao médico. Disseram-me que estava deprimida e medicaram-me. Ainda fui a uma psicóloga, mas não resultou, não houve empatia.

– Nas coisas que te diziam houve alguma coisa que achas ser importante dizer, a quem nunca passou por este processo?

Sim, dizer que a dor não passa, é permanente. Já não sinto a onda de angústia que me assaltava de repente e me fazia saltar as lágrimas, mas continuo a achar que me tiraram os meus pais cedo de mais. Depois, o tempo também não ajuda, os meus pais continuam a fazer-me falta todos os dias.

– Achas que as pessoas não viam isso?

Acho que as pessoas não sabem respeitar esta dor, falam muito friamente sobre isto como se fosse simples, odiava quando me diziam coisas como “força, a vida continua ou o tempo cura tudo”. Achava uma frieza, uma leveza, um despreendimento. Sentia que as pessoas não conseguiam sentir o que eu sentia e deixei de partilhar.

– Sei que mais tarde pediste novamente ajuda profissional

Sim, mas só recentemente, há dois anos. E posso dizer que a equipa que me acompanhou salvou-me a vida. São profissionais, sabem o que estão a fazer e eu senti logo uma empatia com a minha psicóloga. Estou em acompanhamento, e falo muito recorrentemente deste tema, mas é curioso que quando iniciei achei que já tinha feito muito mais o meu luto, mas pelos vistos não.

– Como é que descreves a relação com a tua terapeuta?

Ela é disponível para mim, não me julga, posso falar do que quero e sinto que estamos sempre alinhadas no pensamento e sentimentos. Ela dá-me ferramentas para eu lidar com tudo, principalmente ajuda-me a relativizar as coisas, a dar a importância que elas têm e a pôr-me mais vezes em primeiro lugar. Ensina-me que a minha dor tem nome e que a posso recordar através das memórias que guardo e isso nunca vou perder!

Sónia Garrucho
sonia.garrucho@conforsaumen.com.pt

 

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