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Direito a tudo

“Poderia hoje, à distância do tempo, dizer que este homem de quase 30 anos era alguém feito de contrastes e de incoerências. Os contrastes não seriam problemáticos só por si, pois toda a gente tem o direito de apresentar ‘várias cores’.” Foto © Shuliahin / Unsplash
“Poderia hoje, à distância do tempo, dizer que este homem de quase 30 anos era alguém feito de contrastes e de incoerências. Os contrastes não seriam problemáticos só por si, pois toda a gente tem o direito de apresentar ‘várias cores’.” Foto © Shuliahin / Unsplash

Jornal eletrónico “Sete Margens”,

Artigo - https://setemargens.com/direito-a-tudo/

 | 23 Mar 2023

Quando pensei escrever este artigo quase lhe dei o título “originalidade gratuita”; depois, refletindo um pouco mais, decidi-me por “Direito a tudo”. É que fui percebendo que estamos a atravessar uma época em que o que importa é ser original. Mesmo se a originalidade não tiver conteúdo; mesmo se a originalidade não for fundamentada; mesmo se a originalidade for apenas produto da imaginação de quem mais não faz do que promover uma imagem e/ou vender a banha da cobra como se costuma dizer em “bom português”. Na verdade, existem uma série de dinâmicas experimentadas e testadas que são interessantes e produtivas, enquadram-se em suportes teóricos consistentes e são utilizadas por quem as domina e bem aplica. Outras há que não passam de ser engraçadas, mas cujo impacto expectável e realmente alcançável não se traduz em nada, apesar das ilusões dos que se deixam converter por essas hipotéticas magias.

Ainda assim nem são estas últimas que questiono nas linhas que se seguem, apesar de também as questionar. O que me proponho pôr em causa baseia-se numa história real que se passou comigo, que, por isso mesmo, me pareceu inacreditável e, de certa forma, me desanimou relativamente às potencialidades invertidas, diria eu, da própria natureza humana.

E não. O facto de dizer respeito a alguém que procurou um psicólogo, não desculpa tudo, como me parece mais do que evidente. Passarei a resumir.

Foi há cerca de 7 anos; fui procurada por um rapaz que, supostamente, pretendia fazer psicoterapia. Falou-me da razão da sua decisão, mas, por ele, não passava qualquer tipo de sofrimento. Na realidade, isto não é problemático, pois os mais variados motivos podem justificar este desejo, desde o querer conhecer-se profundamente, pretender refletir e (re)significar a vida, olhar um tempo concreto da sua história à luz de uma melhor consciência da própria realidade…

Fizemos as primeiras marcações com um “contrato terapêutico” pouco definido, mas lá demos os primeiros passos. Desde logo ocorreram sinais bastante significativos para os que somos destas áreas – enganava-se nas datas das sessões, apesar de serem sempre no mesmo dia e hora da semana; chegava atrasado; baralhava-se com os pagamentos, apesar de, no cômputo final, nunca ter ficado a dever nada.

A sua vida era feita de um dia a dia bastante confuso à procura de dinheiro fácil, que é como quem diz, buscando alcançar rentabilidade “mágica” e com muito pouco esforço. Seu pai era um homem de trabalho, bem sucedido nos negócios, mas cuja figura, vida e testemunho eram muito contestados pelo próprio filho, apesar de este ser o mais direto beneficiado e beneficiário de tudo isso.

Poderia hoje, à distância do tempo, dizer que este homem de quase 30 anos era alguém feito de contrastes e de incoerências. Os contrastes não seriam problemáticos só por si, pois toda a gente tem o direito de apresentar “várias cores”. Todos podemos transportar os nossos arco-íris internos que, em alguns momentos, nos fazem rir e nos fazem chorar, nos motivam ou nos desanimam. Contudo, não deveríamos ter o direito à incoerência – criticar alguém e usarmos esse mesmo alguém em benefício próprio; usufruirmos do esforço de alguém, desvalorizando-o e, em simultâneo, querer ter a mesma qualidade de vida que esse alguém atingiu, materialmente falando… Enfim, viver de “pernas para o ar”, procurando primeiro o privilégio e nunca mais o esforço.

Voltarei agora ao tal direito a tudo ou à originalidade gratuita com que comecei o texto. Um dia, este rapaz – com este percurso em que, como facilmente se depreenderá, não encontrou soluções mágicas no consultório, mas apenas caminhos que os que nos procuram se dispõem a percorrer, o que não era o caso… – chegou ao gabinete a horas, em dia certo e entusiasmado. Deixei que traduzisse por palavras esse estado de espírito e começou: “Esta noite tive uma inspiração. Vou aproveitar um dos armazéns do meu pai que agora está vazio e farei uma instalação. Colocarei um cabo metálico no meio do teto ao longo do comprimento do espaço e pendurarei, com fios de náilon de tamanho crescente, caixas de cartão de tamanho também crescente.” Perguntei como faria tudo isso, ao que rapidamente respondeu que chamaria dois empregados do pai, lhes diria o que queria e eles construiriam, desde a colocação da calha metálica, até à iluminação.

O António (nome fictício) apenas sabia que teria de ficar bem iluminado, mas nem uma só ideia tinha de como e porquê isso se faria. Enfim, de tudo a tudo outros tratariam que tal acontecesse. E, depois, arranjaria um nome que chamasse à atenção, divulgaria nas redes sociais e cobraria as entradas (muitas, dizia), o que lhe permitiria ganhar muito dinheiro, pois o espaço era gratuito e o trabalho não seria seu. Pensei então perguntar o sentido, a mensagem, a missão. Não tinha, como era expectável. Apenas disse que cada um pensasse o que quisesse, que era um bom exercício de imaginação e nada mais.

Na minha perspetiva (e atrevo-me a dizer na de muitos artistas com quem tenho tido o privilégio de me cruzar e de partilhar experiências), a arte tem de ser séria, responsável e transportar conteúdo, sob pena de, se assim não acontecer, se tornar algo vazio, bizarro e sem sentido.

É fundamental que todos percebam o poder da arte, para que “artistas” que o não são, não se façam passar por ser. Costumo dizer que bons técnicos, de uma forma ou de outra, quase todos podemos ser se nos emprenharmos, esforçarmos e dedicarmos. Os artistas, pelo contrário, são irrepetíveis. Assim deveriam poder viver da sua tão especial profissão e para isso terem as devidas ajudas. Por outro lado, quem não tem esse dom, que não se invente nem o invente. A arte, os artistas e todos nós que deles beneficiamos de alguma forma, nem que seja porque enriquecem os nossos sentidos, merecemos isso.

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