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Sentido de missão ou imperioso apelo ao indevido destaque

“Enfim, temos assistido a desfiles de formas perigosas de brincar com coisas muito sérias…” Foto © Pixabay
“Enfim, temos assistido a desfiles de formas perigosas de brincar com coisas muito sérias…” Foto © Pixabay

Jornal eletrónico “Sete Margens”,

Artigo - https://setemargens.com/sentido-de-missao-ou-imperioso-apelo-ao-indevido-destaque/

 | 6 Jun 2023

(“Postar” ou viver)

Muito recentemente estava a enviar uma nota biográfica curricular resumida para facilitar a minha apresentação, pelo moderador, numas jornadas de saúde mental e dei por mim, no fim de tudo, a acrescentar “não tem redes sociais”. E, sim, fi-lo pela primeira vez num registo oficial ou que virá a ser público. Como preferirem.

Depois de ter enviado, fiquei a pensar sobre o que tinha acabado de fazer e, de facto, parece-me que foi uma espécie de vontade de contrariar a norma, para não dizer a normalidade.

Nos últimos tempos, em alguns domínios, temos assistido a descrições contraditórias de intenções que, obviamente, não passarão disso; temos assistido a detalhadas narrativas de missões que nunca foram realizadas nem poderão sê-lo, mas, para os mais distraídos, parecem aliciantes ou mesmo, diria eu, salvíficas; temos assistido a promessas ambiciosas que nunca se cumprirão; temos assistido a modos de afirmação pessoal que mais não visam do que colocar as personalidades e os egos acima de quaisquer princípios; enfim, temos assistido a desfiles de formas perigosas de brincar com coisas muito sérias… E, ainda nada tendo sido feito, continuamos a assistir a certezas reiteradas acerca do que não se sabe, mas até parece que sim, tendo em conta a assertividade com que são disseminadas entrevistas, publicações, posts.

Na verdade, o compromisso não é nem pode ser uma mão cheia de nada, disfarçada de somos tão competentes e capazes que faremos melhor do que qualquer um. Parece óbvio, mas nada é “melhor” do que vender bem uma imagem, real ou fictícia. O que se alcançar importa pouco, mas o destaque, a retribuição, a validação e o aplauso, esses são prioritários.

Num tempo em que, maioritariamente, se “posta” em vez de se viver; se apregoa em vez de se fazer; se exibe em vez de se resguardar e de, no fim, apresentar resultados; se inventa o que não se fez para se prometer o que se pretenderia que fosse feito, é mesmo difícil ser apenas autêntico e ficar na sua, acreditando que o justo reconhecimento acontecerá. Somos humanos e se o ideal é ter aquele reconhecimento como um valor acrescentado e não como uma necessidade, não deixa de custar observar recompensa dada a quem apenas devia ser oferecida uma indubitável retirada.

Vivemos numa época autopromocional. Não há dúvida. Mas, para lugares de responsabilidade, funções relevantes, tarefas que só poderiam ser rigorosas, é necessário que a ingenuidade não domine os recrutadores.

Às vezes é mesmo difícil assistir, sem nada poder fazer, a processos que evoluem numa direção indesejável apenas porque uns se aproveitam de contextos e circunstâncias para se evidenciarem e outros o permitem por serem demasiado crédulos e bem-intencionados.

De facto, as redes sociais não são o único lugar de autopromoção, embora o sejam de forma muito prevalente. Também os media divulgam o que é notícia ou os que se mostram líderes nas várias vertentes da nossa sociedade.

Os novos formatos de teletrabalho suscitaram uma série de estudos relativos às lacunas de socialização e à falta de ligamento, se assim se pode dizer, entre preocupações de vários domínios das nossas vidas. Ao mesmo tempo o recurso a meios virtuais, a necessidade de protagonismo, os medos de desaparecer exacerbaram-se enormemente.

Quem deixou de se deslocar também deixou de ter um tempo em que podia distrair-se, fosse com o que fosse – podcasts, música, conversas telefónicas com amigos ou família; deixou de separar responsabilidades e tarefas, pois passou a “encaixar” umas nas outras, como se não existissem fronteiras entre elas.

E qual o meio preferencial para compensar tudo isto? Inventar-se ainda mais. Fazer-se sobressair. Produzir-se de forma fictícia, apenas para ser aplaudido.

Claro que estes fenómenos, mesmo no retomar ao quase normal quotidiano, tiveram as suas consequências, que é como quem diz as suas heranças e os seus herdeiros.

Os que, antes, já eram discretos, tranquilos e viviam do ser, não mudaram muito a sua vida; os indiscretos, intranquilos e que já tendiam a viver das aparências, deslumbraram-se com a possibilidade de, finalmente, se destacarem, permitindo-se ser apenas forma sem conteúdo.

Quando as decisões de cada um são tomadas apenas relativamente à sua vida não profissional, ao modo como gerem a sua existência, e isso não tem consequências em funções desempenhadas face a outros, trata-se do uso da liberdade individual que escolhe fazer. Devemos ser gestores das nossas escolhas, das nossas opções. Se, com isso, não prejudicarmos quem nos rodeia, estamos apenas a definir o caminho que pretendemos percorrer.

O problema coloca-se quando a extensão desse agir exibido e balofo é feita em domínios de grande responsabilidade social ou outra. Nesse caso, na verdade, já não se trata de um tema de liberdade, mas tão só de uma questão de caráter que não é suficiente.

Ainda que sem grande esperança, este texto é uma espécie de apelo – que os enganadores parem, se calem e desistam de tentar; que os decisores ganhem capacidade de observação e excluam de responsabilidades quem inventa experiência, anuncia o que não faz, apregoa o que não sabe e se destaca, na realidade, por bem ter conseguido divulgar uma magnífica produção fictícia da sua competência.

Abusar de nós

“Passamos o tempo a abusar de nós, das nossas potencialidades, dos nossos dons, negligenciando-nos como se pudéssemos voltar atrás e reeditar a nossa existência.” Ilustração: Direitos reservados.
“Passamos o tempo a abusar de nós, das nossas potencialidades, dos nossos dons, negligenciando-nos como se pudéssemos voltar atrás e reeditar a nossa existência.” Ilustração: Direitos reservados.

Jornal eletrónico “Sete Margens”,

Artigo - https://setemargens.com/abusar-de-nos/

 | 28 Abr 2023

Nos tempos mais recentes toda a nossa atenção se tem dirigido para assuntos preocupantes e sérios que nos fazem inquietar, que nos fazem discutir e lutar por aquilo em que acreditamos, uns de uma forma mais ativa, outros de um modo mais discreto, mas também válido. Não há dúvida que o testemunho é um enorme instrumento de bem-fazer aos que temos à volta, àqueles que nos podem olhar com olhos de ver. A busca da coerência torna-se, dentro deste, o mais relevante sinal de quem pretende mudar o mundo ainda que, ao seu alcance, apenas se encontre um pequeno lugar.

Partindo da realidade atual e apesar de poder haver muito boa vontade e muita iniciativa para domínios face aos quais nos sentimos interpelados, todos sabemos que, nas pequenas coisas do nosso dia-a-dia, agimos frequentemente de forma insana e displicente, com base numa relação com a vida sobre a qual pouco refletimos, porque consideramos que é algo adquirido e sem relevo ou não consideramos coisa alguma, porque é tema que não nos ocorre aprofundar.

E, sim, na verdade, passamos o tempo a abusar de nós, das nossas potencialidades, dos nossos dons, negligenciando-nos como se pudéssemos voltar atrás e reeditar a nossa existência. Isto também são abusos, mas que não dão notícia porque, talvez erradamente, pareçam interessar pouco.

Mesmo em momentos como o que atravessamos, de vez em quando, somos despertados por aparentes banalidades que fazem a diferença nas nossas reflexões e que só por exceção dão notícia.

Um destes dias, num curto trajeto de automóvel, decidi ouvir as notícias e, primeiramente, nem percebi a razão daquela curta entrevista que apenas anunciava um concerto. Na verdade, escutando melhor, tratava-se de uma senhora de 88 anos, bastante alegre, bem-disposta e de cabeça arrumada. Descrevia com entusiasmo as atividades já desenvolvidas pelo coro, ao qual pertencia desde o seu início, há nove anos. Falava dos convívios, das pessoas encantadoras com as quais se cruzava, das amizades, das diversas atuações, dos solos que a própria fazia, das viagens com outros elementos. Este coral era feito de pessoas maiores de 70 anos.

Um exemplo de longevidade consistente, se assim pode ser dito.

Parecia difícil entender como é que se chega tão adiante no caminho da existência e se consegue tanto bem viver. Contudo, se é verdade que a ciência nos diz que os vínculos humanos são indispensáveis para a nossa saúde física e também mental, esta coralista estava a testemunhá-lo na primeira pessoa.

Há, naturalmente, mais condimentos para este bem existir. Destes destacam-se, por exemplo, a atividade física e intelectual, com aprendizagem de conteúdos novos; uma boa alimentação, saudável e variada; um bom sono; a manutenção do otimismo; o facto de saber gerir prioridades e, consequentemente, lidar bem com o stresse, etc.

O que parece mais interessante é que, quando olhamos para estes ingredientes, consideramos que são óbvios e que quase todos os encaixamos no nosso quotidiano. No entanto, numa visão mais detalhada dos tempos do nosso tempo, em cada dia que passa, conseguimos perceber que nem sempre fazemos tudo o que depende de nós e que seria muito fácil de concretizar, bastando, para tal, integrar nas nossas rotinas hábitos novos, fáceis e cientificamente comprovados como meios de bem viver.

A irritabilidade, a intolerância, a impaciência perante o que nos contraria, a incapacidade de lidar com a injustiça e com a hipocrisia alheia, são, por outro lado, meios de corrosão interior que precisamos de aprender a evitar, pois perturbam-nos e afetam-nos muito significativamente.

Não é possível mudar o comportamento dos outros, mas, se a isso não nos dedicarmos, conseguiremos não abusar de nós mesmos através de processos de autorregulação simples e que estão, muito mais do que podemos imaginar, inteiramente ao nosso alcance.

De facto, os condimentos de bem viver que acima são mencionados, um dos quais ilustrado de forma testemunhal, ainda precisam de se fazer acompanhar por um desafio que deve constar do nosso diálogo interior para nos posicionarmos como bons gestores de contrariedades. Como afirma Walter Rizzo, “ninguém pode fazer-te infeliz sem o teu consentimento”.

Não podemos controlar as condutas nem o caráter de quem nos rodeia, mas podemos, isso sim, trabalhar interiormente para que, haja o que houver, nos tornemos, no que de nós dependa, guardiões do nosso bem pensar e, consequentemente, do nosso bem sentir, caldo fundamental para a nossa saúde psicológica.

Direito a tudo

“Poderia hoje, à distância do tempo, dizer que este homem de quase 30 anos era alguém feito de contrastes e de incoerências. Os contrastes não seriam problemáticos só por si, pois toda a gente tem o direito de apresentar ‘várias cores’.” Foto © Shuliahin / Unsplash
“Poderia hoje, à distância do tempo, dizer que este homem de quase 30 anos era alguém feito de contrastes e de incoerências. Os contrastes não seriam problemáticos só por si, pois toda a gente tem o direito de apresentar ‘várias cores’.” Foto © Shuliahin / Unsplash

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Artigo - https://setemargens.com/direito-a-tudo/

 | 23 Mar 2023

Quando pensei escrever este artigo quase lhe dei o título “originalidade gratuita”; depois, refletindo um pouco mais, decidi-me por “Direito a tudo”. É que fui percebendo que estamos a atravessar uma época em que o que importa é ser original. Mesmo se a originalidade não tiver conteúdo; mesmo se a originalidade não for fundamentada; mesmo se a originalidade for apenas produto da imaginação de quem mais não faz do que promover uma imagem e/ou vender a banha da cobra como se costuma dizer em “bom português”. Na verdade, existem uma série de dinâmicas experimentadas e testadas que são interessantes e produtivas, enquadram-se em suportes teóricos consistentes e são utilizadas por quem as domina e bem aplica. Outras há que não passam de ser engraçadas, mas cujo impacto expectável e realmente alcançável não se traduz em nada, apesar das ilusões dos que se deixam converter por essas hipotéticas magias.

Ainda assim nem são estas últimas que questiono nas linhas que se seguem, apesar de também as questionar. O que me proponho pôr em causa baseia-se numa história real que se passou comigo, que, por isso mesmo, me pareceu inacreditável e, de certa forma, me desanimou relativamente às potencialidades invertidas, diria eu, da própria natureza humana.

E não. O facto de dizer respeito a alguém que procurou um psicólogo, não desculpa tudo, como me parece mais do que evidente. Passarei a resumir.

Foi há cerca de 7 anos; fui procurada por um rapaz que, supostamente, pretendia fazer psicoterapia. Falou-me da razão da sua decisão, mas, por ele, não passava qualquer tipo de sofrimento. Na realidade, isto não é problemático, pois os mais variados motivos podem justificar este desejo, desde o querer conhecer-se profundamente, pretender refletir e (re)significar a vida, olhar um tempo concreto da sua história à luz de uma melhor consciência da própria realidade…

Fizemos as primeiras marcações com um “contrato terapêutico” pouco definido, mas lá demos os primeiros passos. Desde logo ocorreram sinais bastante significativos para os que somos destas áreas – enganava-se nas datas das sessões, apesar de serem sempre no mesmo dia e hora da semana; chegava atrasado; baralhava-se com os pagamentos, apesar de, no cômputo final, nunca ter ficado a dever nada.

A sua vida era feita de um dia a dia bastante confuso à procura de dinheiro fácil, que é como quem diz, buscando alcançar rentabilidade “mágica” e com muito pouco esforço. Seu pai era um homem de trabalho, bem sucedido nos negócios, mas cuja figura, vida e testemunho eram muito contestados pelo próprio filho, apesar de este ser o mais direto beneficiado e beneficiário de tudo isso.

Poderia hoje, à distância do tempo, dizer que este homem de quase 30 anos era alguém feito de contrastes e de incoerências. Os contrastes não seriam problemáticos só por si, pois toda a gente tem o direito de apresentar “várias cores”. Todos podemos transportar os nossos arco-íris internos que, em alguns momentos, nos fazem rir e nos fazem chorar, nos motivam ou nos desanimam. Contudo, não deveríamos ter o direito à incoerência – criticar alguém e usarmos esse mesmo alguém em benefício próprio; usufruirmos do esforço de alguém, desvalorizando-o e, em simultâneo, querer ter a mesma qualidade de vida que esse alguém atingiu, materialmente falando… Enfim, viver de “pernas para o ar”, procurando primeiro o privilégio e nunca mais o esforço.

Voltarei agora ao tal direito a tudo ou à originalidade gratuita com que comecei o texto. Um dia, este rapaz – com este percurso em que, como facilmente se depreenderá, não encontrou soluções mágicas no consultório, mas apenas caminhos que os que nos procuram se dispõem a percorrer, o que não era o caso… – chegou ao gabinete a horas, em dia certo e entusiasmado. Deixei que traduzisse por palavras esse estado de espírito e começou: “Esta noite tive uma inspiração. Vou aproveitar um dos armazéns do meu pai que agora está vazio e farei uma instalação. Colocarei um cabo metálico no meio do teto ao longo do comprimento do espaço e pendurarei, com fios de náilon de tamanho crescente, caixas de cartão de tamanho também crescente.” Perguntei como faria tudo isso, ao que rapidamente respondeu que chamaria dois empregados do pai, lhes diria o que queria e eles construiriam, desde a colocação da calha metálica, até à iluminação.

O António (nome fictício) apenas sabia que teria de ficar bem iluminado, mas nem uma só ideia tinha de como e porquê isso se faria. Enfim, de tudo a tudo outros tratariam que tal acontecesse. E, depois, arranjaria um nome que chamasse à atenção, divulgaria nas redes sociais e cobraria as entradas (muitas, dizia), o que lhe permitiria ganhar muito dinheiro, pois o espaço era gratuito e o trabalho não seria seu. Pensei então perguntar o sentido, a mensagem, a missão. Não tinha, como era expectável. Apenas disse que cada um pensasse o que quisesse, que era um bom exercício de imaginação e nada mais.

Na minha perspetiva (e atrevo-me a dizer na de muitos artistas com quem tenho tido o privilégio de me cruzar e de partilhar experiências), a arte tem de ser séria, responsável e transportar conteúdo, sob pena de, se assim não acontecer, se tornar algo vazio, bizarro e sem sentido.

É fundamental que todos percebam o poder da arte, para que “artistas” que o não são, não se façam passar por ser. Costumo dizer que bons técnicos, de uma forma ou de outra, quase todos podemos ser se nos emprenharmos, esforçarmos e dedicarmos. Os artistas, pelo contrário, são irrepetíveis. Assim deveriam poder viver da sua tão especial profissão e para isso terem as devidas ajudas. Por outro lado, quem não tem esse dom, que não se invente nem o invente. A arte, os artistas e todos nós que deles beneficiamos de alguma forma, nem que seja porque enriquecem os nossos sentidos, merecemos isso.

Estou triste

“Estou triste porque todos somos poucos para ajudar quem precisa e porque poucos são demais para contribuir para a destruição.” Foto © Victoria Watercolor / Pixabay
“Estou triste porque todos somos poucos para ajudar quem precisa e porque poucos são demais para contribuir para a destruição.” Foto © Victoria Watercolor / Pixabay

Jornal eletrónico “Sete Margens”,

Artigo - https://setemargens.com/estou-triste/

 | 16 Mar 2023

Estou triste.

Estou triste porque Deus não tem culpa.
Estou triste porque há muitas pessoas a sofrer.
Estou triste porque se tem usado o silêncio quando se deve falar e se tem falado quando se devia ter ficado calado apenas para não deixar alastrar a ignorância.
Estou triste porque todos somos poucos para ajudar quem precisa e porque poucos são demais para contribuir para a destruição.
Estou triste porque a esperança é imprescindível à felicidade e porque a felicidade nunca pode assentar no desespero.
Estou triste porque preciso de acreditar num mundo melhor e, por agora, ainda não consigo.
Estou triste porque muitos são superficiais e têm grande plateia e outros são rigorosos e profundos e são menos vistos e escutados.

Quero recuperar a alegria…

Alegria de viver sem medo.
Alegria de ver feridas curadas e agressores bloqueados ou impedidos de voltar a agredir.
Alegria de ver caluniadores calados e impedidos de lançar falsos testemunhos.
Alegria de ver respeitadas as memórias de quem já não pode defender-se.
Alegria de começarmos a viver o Céu na Terra.
Alegria de sermos melodiosos nas nossas partilhas.
Alegria de sermos coerentes nas nossas condutas.
Alegria de sermos brandos nas nossas críticas.
Alegria de sermos mansos nas nossas reacções.
Alegria de sermos empáticos nas nossas relações.
Alegria de sermos responsáveis nas nossas decisões.
Alegria de sermos autênticos nas nossas iniciativas.
Alegria de nos tornarmos, todos e cada um, verdadeiros arautos de quem busca incessantemente a melhor versão de si.

E não aceito:

Não aceito idiossincrasias na interpretação abusiva do que acabo de escrever;
Não aceito leituras adulteradas que conduzam a subtextos que não estão lá nem quero que estejam, porque nem sequer existem.
Não quero dizer nada mais do que disse. Apenas sugerir que cada leitor pegue, como exercício, num período deste texto que o interpele, e procure superar-se no desafio que venha a tomar em mãos, na incessante procura da consciência da sua missão na vida.

Este texto foi escrito em dez minutos, no final do dia 10 de Março, quando deixei o meu coração gritar. Só tinha um bloco por perto. Por isso escrevi à mão, coisa que há muito não acontecia. Talvez isto justifique o tom, o ruído e os sons que dele emanam.

Quero ser livre.

Prova de fogo

Foto © Petko Ninov
Foto © Petko Ninov

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Artigo - https://setemargens.com/prova-de-fogo/

 | 11 Fev 2023

Prova de fogo não é um título original da minha lavra. É, isso sim, o nome de uma poesia escrita pelo Pedro Machado, a quem me referi em artigo anterior, ao transcrever textos de sua autoria. 

De facto, cheguei a pensar juntar a sua poesia à sua prosa, mas preferi separar para poder falar duas vezes do que é ter e caminhar a partir do sofrimento resultante de problemas de saúde mental, mais ou menos graves, fazendo a sua parte, pedindo e aceitando ajuda nos momentos mais difíceis de viver. 

Transcrevo rigorosamente o original:

Acordo, adormeço,
agito, esmoreço
O relógio não pára
a mente acompanha
O sono cessara
A ânsia ganha

O desejo de vitória
O receio de derrota
Toda a história
numa só prova

Lucidez, tenho de a ter
Desta vez, só posso vencer

À prova estarei
Nesta prova de fogo
Só eu sei
o que está em jogo
De escudo e espada lutarei
Com tudo ou sem nada saírei
À prova estarei,
Nesta prova, nesta prova de fogo

Confio, duvido, assertivo, hesitante
O conforto da cama tão desconfortante
Tão vivo e tão morto
A cada instante
Sou chama, sou gelo
Degradante flagelo
Sou o polo norte e o polo sul
Sem divisão
Em busca da solução

À prova estarei
Nesta prova de fogo
Só eu sei
O que está em jogo
De escudo e espada lutarei
Com tudo ou sem nada saírei
À prova estarei
nesta prova de fogo.

Na verdade, estamos cada vez mais alertados e sensibilizados para a dimensão e abrangência que o sofrimento psíquico vai tendo nos dias de hoje. De acordo com a Organização Mundial de Saúde a depressão é, atualmente, o problema de saúde mais frequente em todo o mundo. Torna-se claro que não é preciso haver fatores desencadeantes para que esta doença se instale. Para além disto, vale a pena sublinhar que ninguém está livre, pois não há condição educacional, cultural socioeconómica ou outra que, de algum modo, funcione como garantia preventiva. 

O que se sente é frequentemente incapacitante e, se atentarmos às partilhas de quem vive ou viveu estes probelmas na primeira pessoa, podemos perceber que não existe uma doença, mas múltiplas formas de a sentir. A falta de energia; a desmotivação; o desespero; a desesperança; a escuridão com que a vida é enfrentada; a alteração de pensamentos, sentimentos e comportamentos; enfim a perturbação que pode chegar a ser avassaladora, na extensão com que deturpa a relação de cada um com o seu presente e com o seu futuro.

Também não podemos ignorar que a depressão e a ansiedade não são as únicas doenças mentais que existem. É muito bom falarmos delas desassombradamente para que não haja constrangimentos nos pedidos de ajuda, única via para a recuperação e, numa grande percentagem, para a cura. No entanto, é também fundamental que ninguém se sinta constrangido por assumir outro problema deste foro, mesmo que seja menos comum ou até mais bizarro.

Todos diferentes, todos iguais. É isto que somos. Ainda assim, no que de nós dependa, vale a pena regular os comportamentos, sobretudo no que diz respeito àqueles que podem ter influência no desencadear ou agravar de certas perturbações. Refiro-me aos consumos de substâncias psicoativas, vulgarmente chamadas drogas. Também para estes é preciso não negar, pedindo ajuda.

Agora que há pouco mais de um mês entrámos num novo ano, porque gostamos e precisamos de simbolizar a vida, aproveitamos para refletir que todos somos poucos para combater este flagelo (a doença mental) que, sem mostrar uma ferida aberta, tanto pode esmagar uma existência, quer por falta de qualidade do dia-a-dia, quer por, algumas vezes, conduzir a comportamentos limite.

Agradeço ao Pedro Machado a disponibilidade e a coragm para, com uma das suas competências, que é a escrita, partilhar o que tem sido a sua experiência e, em simultâneo, a dor, a esperança e a resiliência que, dela resultam.

Já não somos livres?

“Para quê tantos estudam tanto e ensaiam tanto, chegando a preparar-se durante meses para fazerem um papel? Para que servem tantos castings para recrutar pessoas para fazerem de conta que são algo que outros não conseguem simular?” Foto: Teatro em Cochim, Índia. © Miguel Veiga.
“Para quê tantos estudam tanto e ensaiam tanto, chegando a preparar-se durante meses para fazerem um papel? Para que servem tantos castings para recrutar pessoas para fazerem de conta que são algo que outros não conseguem simular?” Foto: Teatro em Cochim, Índia. © Miguel Veiga.

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Artigo - https://setemargens.com/ja-nao-somos-livres/

 | 3 Fev 2023

O título deste pequeno artigo é uma pergunta que me coloco muitas vezes a propósito de variados acontecimentos. Contrariamente ao que é habitual, este ano decidimos fazer uma viagem grande em Janeiro e, por isso, só à distância me fui apercebendo de alguns factos, se assim se pode dizer, nacionais, honra seja feita às novas tecnologias que nos enviam jornais e revistas em tempo útil, porque escolho não ter redes sociais. De facto, mesmo do outro lado do mundo, estamos tão perto no nosso imaginário, que até parece que continuamos a andar pelo nosso país e, neste caso, pela nossa capital.

Eis senão quando me apercebi de que um ator já não pode ser ator. Agora parece que o desempenho de papel tem de ser a vivência da própria pele. Se eu precisar de representar um amputado de membro inferior, tenho de cortar uma perna; se eu representar uma pessoa com psicose, tenho de ser psicótica; se eu representar uma pessoa cancerosa, tenho de ter um cancro. Será assim? Mas acima de tudo, vale a pena questionar o que é ser ator. O que é, mesmo historicamente, o teatro.

Para quê tantos estudam tanto e ensaiam tanto, chegando a preparar-se durante meses para fazerem um papel? Para que servem tantos castings para recrutar pessoas para fazerem de conta que são algo que outros não conseguem simular? Que mundo é este, afinal? E quem são estas outras pessoas que sucumbem a manifestações de quem apenas quer provocar conflitos, destacar-se pelas piores razões e impor uma linha ideológica sem lógica, que só vinga porque se enquadra muito provavelmente num lobby poderoso que já perdeu as estribeiras e não sabe que mais há de fazer para se evidenciar.

Na verdade, temos de nos respeitar uns aos outros na condição de cada um. Sejamos o que formos, precisamos de procurar viver com a dignidade de quem se aceita e de quem aceita todos, desde que por esses (todos) seja também aceite. O mundo em que vivemos e a qualidade de estar nele, depende dessas nossas atitudes e dessa nossa consistência de ser. É incongruente querer preparar um mundo melhor e fazer tudo para que o planeta azul se transforme num inóspito deserto de humanidade; é insuportável ter de enfrentar a injustiça e ficar impotente perante ela, sem poder fazer o que quer que seja para a evitar; é, no mínimo, indigno conviver com pessoas que se prestam a isto porque, se não for isto, nunca terão palco nem plateia por mérito próprio…

Não conheço nenhum dos envolvidos, nem os agressores nem as “vítimas”, mas sinto-me na obrigação de fazer pensar quem estiver de olhos fechados e de alertar para os precedentes que se abrem contra a liberdade de cada um, esse bem tão precioso e por quem tantos têm dado a vida numa luta absolutamente extraordinária e difícil, que tantas vidas em tantos cantos do mundo já custou.

Basta! Temos excessos – de cobardias; de indignidades; de incoerências… Queremos apenas liberdade, isso que é um dos enormes tesouros do existir e que não se cansam de nos tentar “roubar”, das mais variadas formas e através dos métodos mais “criativodecadentes”.

Finalmente despertos – doença mental e estigma

“Quando acabámos de viver o Advento e o Natal, olhamos para o ano que vai terminando e, com esse olhar, devemos deixar sentir o impacto das experiências vividas, dos acontecimentos relevantes, das pessoas que nos marcaram.” Foto © danr13.

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Artigo - https://setemargens.com/finalmente-despertos-doenca-mental-e-estigma/

 | Dez 30, 2022

Há mais de 20 anos que trabalho, entre outras áreas, para ajudar a combater o estigma associado à doença mental. A minha vida profissional tem-me oferecido a oportunidade de existir com sentido e de me realizar ao serviço dos outros e em prol das causas nas quais acredito e pelas quais me vou determinando a lutar.

Em todo este percurso tenho tido experiências incríveis e conhecido pessoas extraordinárias que, mais do que tudo, se dispõem a aproveitar, se assim se pode dizer, o seu sofrimento para marcarem a diferença, fazendo algo de bom pelo mundo em que vivemos; pelos outros, conhecidos e desconhecidos, que podem estar ainda em tempo de calar o que sentem, por medo ou vergonha de que falar os destrua ainda mais do que a sua perturbação os tem destruído.

O Pedro Machado, nome real autorizado pelo próprio, é uma das pessoas fantásticas que tenho o privilégio de conhecer e de acompanhar. Em vários momentos viu a sua vida ensombrada por pensamentos perturbadores, sentimentos desfasados da realidade e também vivências não escolhidas mas impostas pelas circunstâncias com que se defrontou.

Em 2020, a mãe do Pedro partiu inesperadamente num tempo de vida ainda improvável, mas, apesar disso e da saudade, essa dor que representa a quantidade de amor na ausência, ele dá no texto que a seguir transcrevo um testemunho de esperança, uma mensagem de aceitação, uma narrativa de segurança e de bem-estar para além do natural e proporcionado sofrimento. Transcrevo exatamente a narrativa do autor.

 

Caminhada a ser feita ora lentamente, ora depressa demais, à procura do ritmo certo.

Entre linhas de prosa e versos de poesia, vou continuando a tentar expressar com “palavras minhas” um constante sentimento de procura de significado e de plenitude para a minha vida.

Muitos altos e baixos sem a resposta desejada. Sem ainda ter chegado onde queria e quero estar. Neste momento estou a querer o que sempre quis, mas, depois deste ano de 2020, peço apenas um ano melhor. Um ano tranquilo que me traga estabilidade.

Espero que o meu anjo na Terra (que agora é o meu Anjo da Guarda) se orgulhe de mim e que, apesar de não podermos partilhar juntos tudo o que aí virá, possa conquistar o que desejo. É a maior alegria que lhe podia dar. Enquanto aqui estiver, lutarei com todas as forças que puder, com resiliência e determinação para atingir o que há tanto tempo procuro.

Espero que seja só céu e sol, sem nuvens nem tempestades. E que ele não desapareça como tantas vezes tem feito. Independentemente disso vou continuar a fazer por ter sempre um sorriso no rosto. O mundo já é tão triste por vezes, que a vida até parece que não é bela. Mas é bela a vida, nós é que às vezes não, não percebemos…

Sejam felizes e aproveitem cada momento com os vossos. A vida é isso e no final de contas é o que mais importa!”

 

Quando acabámos de viver o Advento e o Natal, olhamos para o ano que vai terminando e, com esse olhar, devemos deixar sentir o impacto das experiências vividas, dos acontecimentos relevantes, das pessoas que nos marcaram, enfim… Acaba por ser tempo de balanços.

Este texto do Pedro Machado, ao qual há uns meses tive acesso, foi escrito em 2020 e revela o alento que foi capaz de, resilientemente, colher, apesar da dor.

Recentemente, que é como quem diz, dois anos depois, o Pedro escreveu assim: “Não é o que foi. É o que quero que seja. E isso não precisa de ser este mundo e o outro. Não. Tem é de ser algo que mude o meu mundo e me faça querer conquistar o outro. E quem muda o nosso mundo somos nós.”

Por vezes temos dificuldade em usar palavras simples, mas são elas que traduzem o que nos preenche e nos ajuda a ser felizes. Falo da esperança, que é a confiança em algo melhor, ou seja, a relação mais saudável que podemos ter com esse tempo do nosso tempo chamado futuro. E, sim, aquela é o condimento que sempre está presente nos textos do Pedro Machado.

A verdade é que a sua expressão não é apenas em prosa, mas também em poesia. E, por essa razão, no primeiro artigo do Ano Novo, transcreverei um poema de sua autoria como forma complementar de tradução do seu modo de contar o mundo e a vida, o ser e o existir.

As urgências da humanidade

Não somos donos do que é nosso, e isso pode servir para nos levar a nos relacionarmos com outros. Foto © DR

Jornal eletrónico “Sete Margens”,

Artigo - https://setemargens.com/as-urgencias-da-humanidade/

 | 30 Out 2022

No anterior artigo que publiquei no 7MARGENS e no qual invoquei o Dia Mundial da Saúde Mental, prometi referenciar algumas urgências da humanidade, como proposta para construir a esperança num mundo melhor e, consequentemente, enfrentar e combater, no que de cada um depende, algumas fraturas relevantes da humanidade. Sou consciente de que muito mais propostas inadiáveis haveria a fazer, mas fico-me pelas que, abaixo, invoco, pois não me quero repetir face a outros meus escritos e acredito que os caminhos consistentes são aqueles que percorremos devagar, mas solidamente, simplesmente porque, de facto, temos pressa.

Diria que este texto, embora independente, é uma espécie de anexo.

Assim, para o bem-estar do humano:

– Urge (re)construir uma saudável relação com o tempo (e, sobre isto, não me canso de me repetir). Einstein dizia que a falta de tempo é a desculpa daqueles que o perdem por falta de método;
– Urge ser-se quem e como se é, tendo a coragem de começar a desenvolver contributos para aquilo a que gostaria de poder chamar a Pastoral da Autenticidade;
– Urge perceber que, diria eu, não é cristão viver de aparências;
– Urge não ignorar que a vida humana é apenas uma etapa da existência;
– Urge aprender a adiar a gratificação, sabendo que, como alguém recordou, o único lugar em que o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário;
– Urge centrar-se no essencial, vivendo de discrição e não de exibição;
– Urge ser e estar no concreto e não “atrás” do mundo virtual;
– Urge repensar a solidariedade, primeira vocação do ser humano, e empenhar-se nela;
– Urge partilhar pessoalmente e escutarmo-nos uns aos outros, vivendo o momento presente com sentido e gratidão.

E, se é verdade que cada um deve evoluir a partir do patamar em que se encontra, disse-o Walter Rizzo, nada justifica que, para mais ter, se esmague a dignidade de outros que são explorados e veem a sua liberdade limitada pelos senhores da posse e do poder.

Todo o homem deveria ser obrigado a não esquecer que um dia morrerá, não para trabalhar para o epitáfio, mas para saber que não é dono de coisa alguma.

Os que somos considerados conservadores, na maioria das vezes apenas porque somos católicos, acabamos por ser os mais progressistas, pois pomos as mãos na massa a discutir e a tentar agir de modo a colmatar as fraturas atuais do mundo chamado desenvolvido

Precisamos de arranjar disponibilidade para ESCUTAR E VER o outro, o mundo e Deus; desmistificar o ESFORÇO e melhorar a relação com este, sobretudo nas camadas mais jovens.

Parece, afinal, haver muito que está ao nosso alcance nesta mudança urgente. Cada um tem de atuar no seu território, mesmo que seja mínimo, com persistência e perseverança, que são verdadeiras chaves do sucesso.

Precisamos de acreditar que pode ser mais simples do que julgamos isto que é mudar o mundo. Está, afinal, nas mãos de todos nós. Como disse Jô Soares numa entrevista dada talvez dois anos antes da sua morte, queria ir daqui com a convicção de ter deixado, nos outros, alegria e esperança e sem ter feito mal a ninguém.

Temos, pois, algumas aquisições a pôr em marcha e, sobretudo, temos de perder o medo da tranquilidade e do silêncio–escuta, através do qual crescemos em humildade e em respeito mútuo, valorizamos a simplicidade, honramos os nossos compromissos, descontraímos do stresse do dia-a-dia e agradecemos as nossas circunstâncias, ainda que as de outros nos pareçam bem melhores.

Se nos empenharmos nestas simples propostas em que o disfarce e a representação de papéis de faz de conta deixam de ter lugar, seremos decerto mentalmente muito mais saudáveis e teremos, aqui, um lugar muito melhor para existir.

Grandes fraturas da humanidade

“Porque somos pessoas de pessoas não devíamos esquecer-nos que a solidão mata mais do que a doença.” Foto © Sam Moqadam | Unsplash

Jornal eletrónico “Sete Margens”,

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 | 13 Out 2022

Entre os dias 28 e 31 de Agosto deste ano realizou-se, em Fátima, a 44ª Semana Bíblica Nacional, subordinada ao tema Da Bíblia à Igreja Sinodal. A matéria que, nela, fui gentilmente convidada a abordar tinha que ver com as fraturas da humanidade, baseando-me, sobretudo, na encíclica Fratelli Tutti (nºs 10-50), do Papa Francisco.

Este mês de Outubro é marcado, entre outros, pelo Dia Mundial da Saúde Mental, que se assinalou dia 10. Porque defender a Saúde Mental não é apenas (também o é e isso é muito importante) fazer campanhas anti-estigma ou sensibilizar para a necessidade de se pedir ajuda a tempo, quando se identifica um problema ou os seus sinais prodrómicos, resolvi compilar alguns conteúdos dessa intervenção que fiz: acredito que o conhecimento favorece a regulação e que, a partir desta, podemos prevenir consistentemente, sempre melhor do que remediar, alguns problemas graves. Não somos sem o nosso contexto e, por isso, temos de estar bem cientes do que, dele, nos ensombra os percursos internos e nos predispõe para a insanidade psíquica. Todos podemos ter um papel ativo. Os dias de… são realmente úteis porque nos permitem, a propósito, passar uns tempos a refletir temas intemporais, mas que, se não tiverem um bom pretexto, são frequentemente evitados.

Temos de assumir que o mundo ocidental, desenvolvido, se transformou num 3º mundo no que diz respeito ao modo como cuida da própria humanidade em diversos aspetos. Tudo, nele, muda ao segundo pelas melhores, mas também pelas piores razões e este é o enquadramento em que existimos. O homem não sabe parar e ignora as provas que lhe mostram que também não se salva sozinho.

Fratelli Tutti é, como se sabe, uma encíclica que pretende responder à questão dos caminhos a percorrer para quem quer construir um mundo mais justo e fraterno nas suas relações quotidianas, nos diferentes contextos da vida. Pretende também responder a uma aspiração mundial à fraternidade e à amizade social. Deveria ser de leitura obrigatória e urgente para os que querem voltar a tratar o homem humanamente.

A pandemia poderia ter mostrado que estávamos todos no mesmo barco e ajudado a repensar a nossa existência, mas não me parece. Tudo está a voltar à “patológica normalidade” anterior.

O mundo ficou estranho de repente, mas já esquecemos. As cidades ficaram vazias, mas já esquecemos. Os aviões não saíram do chão, mas já esquecemos. Os animais vieram da selva para algumas urbes, mas também já esquecemos.

A/s guerra/s ameaçam-nos e, não tarda, conseguiremos ser-lhes indiferentes.

Somos, digo eu, ridículos com tudo o que teimamos em não aprender.

O homem ocidental continua a querer ser dono e senhor da vida e de tudo o que existe. Deveriam contar mais os atos do que as palavras. Esse seria o verdadeiro testemunho.

Muitos seres humanos não querem ser dignos, ou seja, preferem expor-se histrionicamente a construir um ser e um estar com dignidade e ter o desejo de superação rumo à melhor versão de si.

Sou contra tudo o que destrói esta enorme criação de Deus que somos nós, mas, nestes tempos, também somos nós que, na nossa evolução imparável, nos destruímos a nós mesmos.

Nestes mesmos tempos em que o abandono parece não incomodar ninguém, mas afeta todos, invocarei alguns pontos essenciais que inviabilizam ou, pelo menos, boicotam a tão necessária fraternidade:

  • O ser humano tem uma ténue memória para a dor; ou seja, como já vimos, teima em não aprender com o seu passado, distante ou temporalmente próximo;
  • No Ocidente o envelhecimento acompanha-se da “morte antes de morrer”. Isto resulta, em grande parte, da solidão em que os mais velhos são deixados;
  • O homem vive para o individualismo, para ter, para exibir e se exibir, para o egoísmo e não para a dimensão comunitária da existência;
  • progresso desregulado tem grandes implicações na perda, subtil ou ostensiva, da nossa saúde mental;
  • ditadura da juventude, da independência plena, como se alguém não fosse vulnerável e não precisasse dos outros, aquilo a que costumo chamar a “síndroma da autonomia”, exceto quando for para ser servido, cada vez imperam mais;
  • O envelhecimento da população e a solidão em que os mais velhos são deixados, em simultâneo com o aumento da esperança média de vida; o mundo em que só se conta pela utilidade que se tem ou pelas mordomias que se prestam e o desprezo pela sabedoria dos anciãos hostilizam a existência, a partir de certo tempo;
  • As ambições do ser humano, para além da mais legítima de todas, o amor, tornam-lhe a existência artificial porque o desregulam na sua ação. Costumo ordená-las, e creio que não me engano, em prestígio, poder e dinheiro;
  • O lugar em que o homem tem medo do próprio homem – outro obstáculo à solidariedade;
  • O imparável ruído ensurdecedor porque “ninguém pode tranquilizar-se”;
  • Este mundo ocidental que é uma quimera para os migrantes, atrás da qual frequentemente, perdem a vida;
  • desprezo pelas imperfeições, que é como quem diz, pelas marcas da existência. Aliás, a velhice é já sinónimo de patologia, classificada internacionalmente;
  • Vive-se depressa demais em vazio de sentido. Exemplo disso são as/os influencers por banalidades sem senso, sem conteúdo e, frequentemente, até sem estética;
  • O que devia ser serviço, como, por exemplo, a política, é promoção pessoal e retribuição de favores à custa dos outros;
  • O homem tem-se desunido e distanciado, disfarçando-se de mais próximo. Não se envergonha com o racismo ou com o fomentar da pobreza dos que explora.

Com isto tudo e muito mais que não se disse, a realidade já superou a ficção. O “todo-poderoso sapiens” já não tem fantasmas. Parece que a culpa, o medo e a vergonha que, antes, o ensombravam, mas também o regulavam de certa forma, deixaram de ter significado.

Já esquecemos que não cuidar do mundo é também não cuidar de nós. Nunca se falou tanto de ambiente como agora e faz sentido. É, contudo, necessário que haja coerência e maturidade para não ceder a exageros com os quais nos defrontamos todos os dias nos caminhos das nossas cidades que, tantas vezes, parecem uma selva de agressões disfarçadas de boas práticas.

Nunca foi tão difícil ser livre como hoje. A ética, de que tanto se fala, parece estar em vias de diluição. As assimetrias mundiais são brutais. O homem ocidental não olha para o lado. É o verdadeiro homem desumano.

Estamos contaminados pelo perigo das modas que escravizam – só se é aceite se se fizer como os outros, se se for onde os outros vão, se se tiver o que os outros têm.

Os atuais desejos mais frequentes dos jovens de 20 anos são, sem querer dramatizar, incoerentes e ridículos – viajar e ter experiências incríveis; ganhar muito trabalhando pouco (dinheiro fácil); estudar no estrangeiro porque os outros/ricos também estudam; ser rico antes dos 30 anos, mas não perder “pitada”; sair e estar socialmente em todos os lugares sem pensar que no dia seguinte se tem de ir trabalhar ou ter aulas; ser influente nas redes sociais; concretizar todos os seus anseios rapidamente.[1]

Em suma, o ruído da exterioridade em que se vive é deveras ensurdecedor e contribui fortemente para alguns dos mais graves problemas de saúde mental que afetam a humanidade.

A depressão nos mais velhos sobe em flecha e a ansiedade sobe igualmente em todas as gerações.

Porque somos pessoas de pessoas não devíamos esquecer-nos que a solidão mata mais do que a doença.

A incapacidade de viver no presente com base na insaciável ambição (tudo está ao alcance) é responsável pelo descontrolado aumento das perturbações ansiosas e pelo medo de não estar em todas. A propósito disto exemplifico com a história de um jovem que, diria eu excecionalmente, tem uma ótima relação com o esforço, mas apenas consegue sentir-se seguro porque controla, pensa ele, e não porque confia. Perde o seu equilíbrio quotidiano, desregulando a própria biologia, que é como quem diz o sono, a alimentação, a atividade física, etc., para trabalhar em excesso e sem limites, projetando o seu futuro em metas mesmo difíceis de atingir.

A ilusão do “tudo é possível” contribui fortemente para o aumento da extensão das perturbações da personalidade. O remorso e a empatia começam a estar em vias de extinção e por isso entramos na apologia de qualquer coisa pode ser.

O flagelo resultante do mau uso das redes sociais e o que isto implica de permanente exposição, o fim da intimidade e da descrição, que leva à “doença das comparações” também deprime e separa famílias.

As incontroláveis consequências do cyber-bulliyng; os suicídios devidos a jogos online; o desregrado desenvolvimento das tecnologias que pode contribuir fortemente para o incremento de quadros psicóticos graves, tais como delírios persecutórios (com as escutas, as câmaras, etc.)… Enfim, a ficção e a realidade já não têm fronteiras bem definidas e, por isso, se confundem.

Não queria terminar esta reflexão em tom de desesperança, já que evidenciar o que está mal tem de ter como missão incentivar ao bem-fazer e à mudança. Assim, num próximo artigo, porque este já vai longo, falarei das urgências da Humanidade, numa lógica de mostrar como, no nosso dia-a-dia, todos podemos contribuir para o nosso bem-estar e, naturalmente, para melhorar a nossa saúde mental.

 

[1] Reflexão feita a partir de um texto de 2014 atribuído a Ricardo Archilha.

Viver saudavelmente a vocação

Viver saudavelmente não é apenas não ter doenças, mas, em concordância com a OMS, conseguir um estado de bem-estar físico, mental e social. Foto © Petko Ninov.
Viver saudavelmente não é apenas não ter doenças, mas, em concordância com a OMS, conseguir um estado de bem-estar físico, mental e social. Foto © Petko Ninov.

Jornal eletrónico “Sete Margens”,

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 | 22 Set 2022

Decidi escrever sobre isto na reentrada após férias: frequentemente, estas semanas são tempos desafiantes, que nos levam a tentar não ceder às exigências da vida de forma desequilibrada. Com isso, evitamos ficar tão cansados rapidamente, como nos sentíamos antes de ter parado o nosso trabalho e as nossas obrigações quotidianas, profissionais e outras.

Viver saudavelmente não é apenas não ter doenças, mas, em concordância com a Organização Mundial de Saúde (OMS), conseguir um estado de bem-estar físico, mental e social. Deste modo, para alcançar a perceção de uma vivência saudável de qualquer vocação, é importante olhar para o que é uma vivência saudável da vida.

Entendo que qualquer vocação é digna, desde que seja objeto de um discernimento maduro e consistente e que nos mobilize, a partir daquele, para a verdadeira consciência da nossa missão.

Muito se fala daquilo que está errado, das formas desajustadas de existir; mas, de modo tranquilo e simples, podemos começar a olhar construtivamente para o que nos faz ser e estar bem, seja isso o que for e em que condição for.

Deste modo, todas as vocações de vida devem constituir uma oportunidade para bem nos relacionarmos com os desafios que são colocados no nosso caminho. Somos seres biológicos, psicológicos, sociais e espirituais e pragmatizamo-nos, se assim podemos dizer, porque pensamos, sentimos e agimos.

Assentamos os nossos percursos em alguns pilares dos quais me apetece destacar a memória, enquanto guia estruturante; a motivação, que poderíamos metaforizar como sendo o motor de arranque e de suporte da consistência das nossas condutas, e a autoestima, que é como quem diz a impressão que temos sobre nós mesmos. Há quem a defina como julgamento, mas, pela conotação que este acarreta, prefiro não o fazer.

Conseguir escolher viver por amor e não por medo faz toda a diferença para a saúde mental. Na verdade, alguns dos “fantasmas” que temos de compreender para nos libertarmos deles, são este mesmo (o medo), a culpa e a vergonha, essa inquietação com aquilo que pensamos que os outros pensam de nós.

Também em qualquer vocação é fundamental construir a liberdade de não se deixar guiar por aquelas que considero serem as ambições menos positivas que mais proliferam no mundo dito desenvolvido, neste século XXI – o prestígio (aos olhos dos outros), o poder e o dinheiro.

Todos, sem exceção, precisamos de nos conceber como seres em relação com quem nos rodeia, mas também connosco mesmos, com Deus e com o mundo, para já não falar da relação que também precisamos de ter com o tempo e com a própria vida que nos é dada e que, para os que temos fé, representa “apenas” uma etapa da nossa existência.

Todos somos, enfim, gestores das nossas prioridades, dos nossos equilíbrios e das nossas missões, mas precisamos de saber como fazer tudo isso para vivermos saudavelmente. Para tanto, vale a pena invocar apenas algumas sugestões que devem ser entendidas em jeito de pistas de reflexão:

– Integrar um bom grupo de pares;
– Conseguir ter a capacidade de não ser pedinte de afetos, alcançando um bom equilíbrio afetivo;
– Saber que nem todos podem ser tudo só porque são excelentes pessoas, estejamos, ou não, a falar de vocações consagradas. Uma coisa é ter um bom desejo. Outra é ser capaz de viver em harmonia com ele, com delicadeza, dedicação, alegria genuína e coerência;
– Disponibilizar-se a trabalhar a sua história, meio de transporte até ao presente, a fim de ser apenas produto, mas não ficar refém dela;
– Alcançar autonomia e equilíbrio emocional;
– Tomar consciência de que autoestima é bem diferente de arrogância e de narcisismo, e dedicar-se a crescer em descrição e em humildade;
– Alcançar a capacidade de acautelar as “idealizações do que não foi vivido”;
– Construir pouco a pouco a capacidade de se sentir seguro porque confia e não porque controla;
– Investir nessa tão necessária capacidade de lidar com a frustração e de adiar a gratificação com persistência e perseverança;
– Conseguir que o reconhecimento dos outros seja um valor acrescentado e não uma necessidade para se confirmar;
– Alcançar a maturidade na interdependência e não na submissão ou, pelo contrário. no autoritarismo dominador, narcísico, ditatorial e idolátrico;
– Ser autêntico;
– Não ter agendas próprias e/ou escondidas…

Em síntese, crescer em maturidade, usando sabiamente a liberdade e a responsabilidade, em busca de equilíbrios e de sentido, como sugere e tanto podemos aprender com Vitor Frankl.

O texto já vai longo e, por isso mesmo, não vou detalhar domínios que teriam abordagens complementares, não necessariamente coincidentes, em função de vidas específicas, como é o caso da afetividade e da sexualidade nas vocações consagradas. Preferi, neste artigo, mostrar que, todos, sem exceção, temos enormes desafios comuns, se quisermos viver saudavelmente, no que de nós depende. Acredito que esta que deve ser uma insaciável procura, está verdadeiramente ao nosso alcance, sendo necessário investir nela com dinamismo e empenho, sem que a acomodação e a perversidade possam fazer parte do léxico de possíveis condutas.

Tenho consciência que este artigo é bastante denso, pois quase cada linha pode ser pretexto de detalhado desenvolvimento. Espero verdadeiramente que, para quem o lê, esse objetivo seja atingido.

Termino citando um provérbio árabe que diz mais ou menos isto: não digas tudo o que sabes, não faças tudo o que podes, não acredites em tudo o que ouves, não gastes tudo o que tens. Porque quem diz tudo o que sabe, quem faz tudo o que pode, quem acredita em tudo o que ouve, quem gasta tudo o que tem… muitas vezes diz o que não convém, faz o que não deve, julga o que não vê e gasta o que não pode.

Assim sendo, passo a passo, poderemos chegar a uma consistente e progressiva pedagogia de bem viver.

Conversas informais com Margarida Cordo

Conversas informais com Margarida Cordo Canal - https://youtube.com @conversasinformaiscommarga8883

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Jornal eletrónico “Sete Margens”, Artigo - https://setemargens.com/abusar-de-nos/ Margarida Cordo | 28 Abr 2023 Nos …